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A Vida segundo José Saramago
Filho de gente pobre e quase analfabeta,
fez-se sozinho para existir com uma ideia de si e do mundo. Tornou-se escritor, um homem
de convicções inabaláveis, mas também de escondidas fragilidades. Aqui se traça o
retrato do primeiro português a receber - hoje, quinta-feira, 10, em Estocolmo - o
Prémio Nobel da Literatura
Cada ruga na cara de um homem conta uma história. Aos 76 anos, no rosto de José
Saramago, apenas em torno dos olhos, descaídos, cansados, se marcam linhas finas com uma
expressão própria. Depois, há a boca, um traço estreito que tem de rasgar o rosto
quando ri, ou que faz desaparecer os lábios, transformando-se numa faca afiada a
denunciar a comoção. Um dia, a mesma boca do homem então com 18 anos, serralheiro
mecânico nos Hospitais Civis de Lisboa, disse: «Aquilo que tiver de ser meu, às mãos
me há-de vir ter.» E por ela o destino foi traçado.
Nem Deus nem o Diabo foram chamados para
este pacto. José de Sousa Saramago nasceu a 16 de Novembro de 1922, numa casa humilde da
Rua da Alagoa, freguesia de Azinhaga do Ribatejo, concelho da Golegã, a 32 Km de
Santarém, 102 de Lisboa.
E logo ali se desuniram os fados. Para não pagarem uma multa, os seus pais, José de
Sousa, jornaleiro, e Maria da Piedade, doméstica, ambos com 24 anos, decidiram registar o
menino como tendo nascido a 18. Calharam mal a sorte, o dia e o oficial do Registo Civil.
Afirmaria décadas mais tarde o escritor que o funcionário da Conservatória estava
bêbado e por isso se enganou a escrever o seu apelido, juntando-lhe a alcunha da
família: Saramago, nome de planta daninha com que por maldade era apelidada. A cópia
original do dito registo mostra, porém, uma letra elegante e segura, nada própria de um
bêbado.
Será este o primeiro mistério da vida do futuro Nobel.
As Raízes
MENINO
Com 6, 8 e 10 anos |
Com a palavra «saramago», hoje pronunciada pelos quatro cantos do mundo, nasceu outra
incógnita. A sua origem, árabe, parece ser também a de um dos ramos da genealogia do
escritor. Ele mesmo o refere numa crónica publicado em A Capital, em 1969,
lembrando as histórias fabulosas que em pequeno ouvia sobre o seu bisavô materno,
oriundo da África do Norte, falecido na Azinhaga. Seria este «um homem alto, magríssimo
e escuro, de rosto de pedra, onde um sorriso, de tão raro, era uma festa». Contava-se
que teria morto um homem em circunstâncias obscuras , «a frio, como quem arranca uma
silva». E o menino José tremia só de ouvir.
A certidão de nascimento |
Recuemos portanto com ele até ao tempo da infância. Tinha Saramago dois anos quando o
pai José de Sousa decide migrar da Azinhaga para Lisboa e para um emprego numa esquadra
da Polícia de Segurança Pública, onde chegaria a subchefe. Em Dezembro desse mesmo ano,
1924, morre-lhe o filho mais velho, Francisco, com quatro anos e dois meses, vítima de
uma broncopneumonia. O choque desta morte afectará para sempre aquele lar. Do seu único
irmão, Saramago nada mais virá a saber. A mãe apenas lhe diz, «em ocasiões que [ele]
achava mal escolhidas, que o Chico tinha as faces coradíssimas, ao contrário [das dele],
que sempre puxaram para o pálido» (Cadernos de Lanzarote, Diário IV).
A família Sousa vive então uma vida dura, em quartos alugados, águas-furtadas ou
partes de casa, na área do Alto de Pina, primeiro na desaparecida Quinta do Perna-de-Pau,
depois na Rua E (hoje Rua Luís Monteiro) e na Rua Carrilho Videira. No entanto, aos oito
anos, o menino já aprendera a ler muito bem, na Escola Primária da Rua Martens
Ferrão, depois na do Largo do Leão, com o professor Vairinho «um homem alticalvo, grave
quanto bastava para acentuar a respeitabilidade da sua posição de director, mas, ainda
assim, nosso amigo e nada exagerado na disciplina» (A Bagagem do Viajante).
JOSEFA DA CONCEIÇÃO E JERÓNIMO MELRINHO
Os avós maternos serão uma referência fundamental na vida de Saramago |
Na escrita, «fazia poucos erros para a idade, só a caligrafia era má, e assim veio a
ficar sempre». Em compensação, José Saramago devorava as páginas do Diário de
Notícias. Pouco mais havia em casa para ler: um guia de conversação de
Português-Francês assinado por Molière; e um livro grande, «com histórias de
chorar», A Toutinegra do Moinho, de Émile de Richebourg, encadernado de
azul e religiosamente guardado pela mãe numa gaveta da cómoda, embrulhado em papel de
seda e cheiro de naftalina.
Ao contrário do seu marido, Maria da Piedade nunca soube ler. Quase no final da sua
vida, a única neta, Violante, ensiná-la-ia a assinar o nome. Mas foi ela, com um
inusitado espírito visionário, quem comprou o primeiro livro que, aos 13 anos, o filho
teve como seu: O Mistério do Moinho, de J. Jefferson Farjeon. Apontou-o o
futuro escritor no escaparate de uma papelaria, deliciado com o presente que ia levar para
as férias grandes, sempre passadas na Azinhaga. Aí, entre a mudança da palha das
pocilgas, os passeios entre os troncos torcidos das oliveiras ou «o desnocar da nuca dos
coelhos com uma pancada seca do cutelo da mão», Saramago teve o seu primeiro contacto
com o mundo da literatura.
MARIA DA PIEDADE E JOSÉ DE SOUSA
«Meus pais nesta fotografia com (69) anos, tirada quando o meu pai já voltara da Grande
Guerra e a minha mãe estava grávida de meu irmão» (A Bagagem do Viajante) |
Sentado num quarto do Hotel Altis, em Lisboa, Saramago afirma: «Nunca tive ambições
na vida!»
Estamos a poucos dias de receber, em Estocolmo, o Prémio Nobel. Desde o anúncio da
sua atribuição, a 8 de Outubro, não teve um minuto de sossego. De repente, o mundo
virou os olhos para este sujeito alto, seco, autor de 28 livros em 51 anos de escrita.
Ateu e Místico?
«Nunca tive ambições na vida!», repete. Vem em seu socorro o que, em Fevereiro de
1995, no terceiro volume dos Cadernos de Lanzarote, espécie de inventário do
quotidiano que iniciou em 1993, escreveu: «A mim estas coisas assombram-me, quase me
deixam sem palavras (... ). O rapazito que andou descalço pelos campos da Azinhaga, o
adolescente de fato-macaco que montou e tornou a montar motores de automóveis, o homem
que durante anos calculou pensões de reforma e subsídios de doença, e que mais adiante
ajudou a fazer livros, e depois se pós a escrever alguns esse homem, esse adolescente e
esse rapazito acabam de ser nomeados doutor honoris causa pela Universidade de
Manchester. »
O CAMPISTA
«Foi no Verão [de 1941]. Combinara com uns amigos ir passar o fim-de-semana sob a tenda,
ali para a lagoa de Albufeira» (Deste Mundo e do Outro) |
Seria esta uma distinção entre as muitas que viria a receber - culminando na entrega,
no último dia 3, pelo Presidente Jorge Sampaio, do Grande Colar da Ordem Militar de
Santiago da Espada, a mais alta condecoração portuguesa, até agora reservada a chefes
de Estado. Mas o homem que a recebeu é o mesmo que, agora, nos assegura: «Não quero,
recuso-me a romantizar as coisas.» Então como entender o romantismo com que fala, por
exemplo, dos seus antepassados?
Qualquer afirmação que se faça sobre José Saramago, homem fértil em subtis
contradições, é uma armadilha. Sabem-no bem os seus amigos, poucos, que movem com
pinças as palavras com que o referem. O escritor e jornalista Baptista-Bastos, 64 anos,
conheceu-o no início de 1965, num restaurante do Bairro Alto, e recorda-o como «um tipo
bem posto, com um ar gravíssimo, profundamente triste e sonhador».
Hoje, sustenta: «Por mais que o negue, ele é um animal místico, a braços com a
transcendência de si próprio.» Fala de uma ferida oculta e nunca cicatrizada, carregada
por Saramago até à morte, essa etapa que, a este ateu confesso, parece não inspirar
qualquer temor. Descreve-o como «um homem de amor, extremamente hábil e inteligente,
alguém coerente e congruente com o quadro moral e ideológico que lhe serve de
couraça». No livro que Bastos sobre ele escreveu (José Saramago, Aproximação a Um
Retrato, Dom Quixote), o autor de Memorial do Convento deixará dito: «Sou
incapaz de mostrar uma alegria profunda. Algo me impede de dar-me em espectáculo a mim
próprio.»
Um Duro Legado
O POETA
Com 44 anos, publica o primeiro livro de poesia, Poemas Possíveis. Mais tarde,
afirma: «Poderia ser um poeta com alguns poemas mais ou menos bons, mas não mais do que
isso.» |
De onde lhe vem esta tão rígida concepção de si próprio e do mundo? «A raiz para
muitos dos meus comportamentos de adulto está na impossibilidade de, em criança, chegar
à minha família», responde. À descrição do modo como, então, a mãe lhe negava
afecto, junta o retrato dos avós matemos, Josefa e Jerónimo, e da sua luta sem tréguas
pela vida. Dos avós paternos, o guarda de herdades João de Sousa e a doméstica Carolina
da Conceição, nascidos, respectivamente, em 1869 e 1871, pouco desvenda. Mas, por
várias vezes, nos seus livros, Saramago emoldura com uma aura romântica os feitos
daquele «avô guardador de porcos, de cujos pais nada se sabia, posto na roda da
Misericórdia, homem toda a vida secreto, de mínimas falas, também delgado e alto como
uma vara» (A Bagagem do Viajante).
Filho das ervas ou «filho oculto de uma duquesa», o analfabeto Jerónimo, de cajado
na mão, capote enlameado e imensa sabedoria, é uma referência fundamental na sua vida.
Com ele enrolado numa manta lobeira, debaixo de uma figueira da Azinhaga e numa noite
morna de Verão, o menino José aprenderá os segredos das estrelas. Com a sua mulher,
Josefa, «a mais bela rapariga do seu tempo», Jerónimo fará sete filhos, dormirá na
mesma cama com os bácoros, viverá «uma vida difícil, de desconforto, de ignorância».
No final, deixa ao neto como herança a marca indelével da luta pela subsistência e da
crueza do destino dos pobres, aquilo a que Baptista-Bastos virá a chamar «uma moral
proletária do trabalho».
Serralheiro, Revoltado
O PRIMEIRO LIVRO
Aos 13 anos, a mãe oferece-lhe este título, apontado pelo menino no escaparate de uma
papelaria. |
Violante Matos, a única filha do escritor, bióloga, deputada do Partido Socialista na
Assembleia Regional da Madeira, 51 anos defende: «Tudo o que ele conseguiu na vida nasceu
da necessidade interior de, em dado momento, fazer uma coisa e deixá-la bem feita. Não
para chegar a algum sitiou mas para cumprir os seus próprios objectivos.» Ele mesmo
acrescenta que é difícil entender esta sua «pouco normal ausência de ambição», este
ir vivendo cada dia como uma luta só, transposta para o futuro apenas pela convicção de
que «tudo chega quando tem de chegar».
O dever do trabalho, a disciplina férrea com que sempre o enfrentou, remontam ao
período entre 1934 e 1939, quando aprendia o ofício de serralheiro mecânico na antiga
Escola Industrial Afonso Domingues, em Xabregas, para onde se transferira, por falta de
recursos económicos, do Liceu Gil Vicente. Explica, no terceiro volume dos Cadernos de
Lanzarote: «Nessa altura compreendi que quando produzimos uma peça de um mecanismo,
ela tem que entrar em harmonia com as outras peças, tem que funcionar, tem que ser bem
feita.» Nas oficinas, «iluminadas por altos janelões que davam para rua da Madre de
Deus», José obedecia às ordens dos mestres Vicentino, Teixeirinha e Gião. Com tanto
esmero o fazia que no seu caderno de aluno mediano, ficará a brilhar um 15 a Serralharia,
e outro a Francês. Este contradiz as suas notas a Português, que não ultrapassam o 11,
mas deixa adivinhar o seu desempenho, entre 1955 e 1981, como tradutor de 48 livros.
A TURMA
Fotografia de fim de curso, em 1938.
Está ao centro do grupo, na última fila. |
José Saramago faz-se, entretanto, um homem. Logo aos 16 anos, quando termina o curso
técnico, começa a ganhar o seu sustento, como serralheiro mecânico, nas oficinas dos
Hospitais Civis de Lisboa. Mais tarde, relata a Zeferino Coelho, seu amigo e director da
Caminho (desde 1980, editora de todos os seus livros), a indignação que sentiu num dia
em que estava a comer da marmita com os outros trabalhadores. Passou por ele o seu chefe,
acompanhado de alguém a quem mostrava as oficinas e as máquinas, mas nem por um segundo
os visitantes detiveram o olhar sobre os trabalhadores, postos «em sentido». Saramago é
o único que permanece sentado. Comenta Zeferino: «julgo que a sua rebeldia nasceu ali,
na percepção da sua condição de operário. É por isso que, há bem pouco tempo, em
jeito de brincadeira, ele me disse que tinha inventado 'o comunismo hormonal'.»
ALUNO MEDIANO
Na Escola Afonso Domingues, onde, entre os 12 e os 17 anos, aprende o ofício de
serralheiro, é um estudante com média de 11. Comprova-o a sua caderneta de aluno, aqui
pela primeira vez divulgada. |
Mas José não é um operário qualquer. «Calado, metido consigo, (... ) tem poucos
livros em casa porque o ordenado é pequeno, mas leu na Biblioteca Municipal das Galveias
tudo quanto a sua compreensão logrou alcançar.» (Aviso introdutório à reedição de Terra
do Pecado, em 1997). Nestas páginas, que devora em horário nocturno, descobre os
autores para sempre seus favoritos: Gogol, Kafka, Cervantes, Montaigne, Padre António
Vieira e Raul Brandão. O gosto pelas palavras torna-se de tal modo evidente que, em
Outubro de 1942, a administração dos Hospitais Civis de Lisboa o transfere, como
auxiliar de escrita, para uma das Repartições, à razão de nove escudos por dia.
Então, «é tão cumpridor e pontual que à hora de começar o serviço já está sentado
à pequena mesa em que trabalha, ao lado da prensa das cópias.»
Viver, Apagar as Paixões
Quando, em 1943, um ano antes de rescindir o contrato com os Hospitais Civis, Saramago
começa a trabalhar na Caixa de Abono de Família do Pessoal da Indústria de Cerâmica,
Ilda Reis já entrara na sua vida. Também com 20 anos, esta moça morena e bonita,
natural de Lisboa, era dactilógrafa na sede dos Caminhos de Ferro de Portugal. Por
estranha coincidência, enamorara-se de um José que, em pequeno, sonhava vir a ser
maquinista de comboios, depois aviador militar, por fim escrevinhador. O casamento dá-se
em 1944 e dura 26 anos, mas sobre ele o escritor nada deixará dito.
OPERÁRIO, LEITOR
Aos 18 anos, é serralheiro mecânico nos Hospitais Civis de Lisboa. Ganha oito escudos
por dia. |
O mesmo acontece com todas as outras paixões da sua vida, excepção feita para a
última, com a jornalista espanhola Pilar del Río, celebrada em casamento, em 1988. Da
relação que, durante 20 anos, até 1986, mantém com a escritora Isabel da Nóbrega -
que, em 1964, tem 39 anos, e já ganhara o Prémio Camilo Castelo Branco com o romance Viver
com os Outros - José Saramago apaga todas as referências.
Nas reedições dos livros publicados até 1984, desaparecem assim as dedicatórias:
«Não se dirá aqui o nome. Mas da sua exaltação nasceu este poema, do seu riso esta
autobiografia, da sua verdade esta meditação» (Deste Mundo e do Outro, 1971);
«À Isabel, sempre» (Levantado do Chão, 1980); «À Isabel, porque
nada perde ou repete, porque tudo cria e renova» (Memorial do Convento, 1982); ou
«A Isabel, outro livro, o mesmo sinal» (O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1984).
Esclarece José Augusto França, 76 anos, amigo do escritor há 39: «A Isabel, filha
das chamadas boas famílias, empurrou-o para um meio social que não era o dele. Acreditou
nele e incentivou-o a explorar o imenso talento que já antes possuía.» Zeferino Coelho
remata: «Acho que tiveram uma relação de intensa paixão que, com o convívio do
dia-a-dia, se foi degradando.»
Os Anos do Silêncio
O PRIMEIRO CASAMENTO
Estamos em 1944. ao centro, José Saramago e Ilda Reis. Por trás do noivo, estão o pai,
José de Sousa, e os avós Josefa e Jerónimo. |
Voltemos, entretanto, a meados da década de 40. Como «seguimento de leituras mal
arrumadas e mal organizadas», Saramago escreve o seu primeiro romance, A Viúva.
A história tem jeitos de fatalista enredo camiliano, envolve uma viúva ribatejana, a
sua paixão pelo cunhado e a chantagem que sobre os dois é feita por uma criada,
Benedita, figura gémea da Juliana de Primo Basílio, de Eça de Queirós.
Em 1947, o manuscrito é enviado pelo candidato a escritor, «com notável atrevimento,
sem padrinhos, sem empenhos, sem recomendações» (Aviso à reedição), para a editora
Parceria António Maria Pereira. Por inexplicáveis razões, pouco tempo depois reaparece
nas mãos de Manuel Rodrigues, da Editorial Minerva, que lhe altera o título para
Terra do Pecado, convence Saramago a prescindir dos direitos de autor, e o dá à
estampa ainda nesse ano. Colhendo duas ou três razoáveis críticas, o volume depressa
cai no esquecimento. Será rejeitado pelo próprio escritor, que o retira da sua
bibliografia, até 1997, quando José Carlos de Vasconcelos o recupera no Jornal de
Letras, assinalando os seus 50 anos de escritor, e ele se decide assumi-lo.
NA PRAIA
José Saramago, Ilda Reis e a filha, Violante, em 1950, na
Parede. |
Aos 26 anos, com um livro publicado, uma filha que acabou de nascer e a quem
«medievalmente» dá o nome de Violante, e umas quantas árvores plantadas na Azinhaga, a
José «pouco mais resta para fazer na vida». Mas não, não baixa os braços, e produz
mais um original, Clarabóia. O romance, dirá ele, em 1997, ao ensaísta e
director da Biblioteca Nacional, Carlos Reis, «é a história de um prédio com seis
inquilinos sucessivamente envolvidos num enredo» (Diálogos com José Saramago, a
editar pela Caminho).
Na época, o amigo e pintor Figueiredo Sobral encarrega-se de o enviar para a Empresa
Nacional de Publicidade. Mas só em 1990, quando procede à reorganização dos seus
arquivos, a editora dá sinal do manuscrito ao escritor. «Eu próprio me havia esquecido
dele durante todos estes anos; sempre tive consciência de que não se perdeu grande coisa
em não ter sido publicado», clarifica Saramago.«Uma das grandes incógnitas da
biografia do José», diz-nos um dos seus amigos mais próximos, José Manuel Mendes, 50
anos, presidente da Associação Portuguesa de Escritores, « é o facto de, durante 19
anos, entre a criação de Clarabóia e a edição de Os Poemas
Possíveis, em 1966, ele não ter escrito nada.» Habituado a desmistificar todas as
questões que lhe dizem respeito, Saramago é rápido na explicação: «Durante todo esse
tempo, eu não estava decepcionado com a recepção de Terra do Pecado, não
pensava acumular experiência para escrever mais tarde... Simplesmente, achava que não
tinha nada para dizer.» Para mais, a vida corria, rápida e difícil.
AS FÉRIAS
Nos anos 50, Saramago visita com frequência a pequena
plantação dos sogros, situada no Colmeal, Serra da Lousã. Entretanto, passeia de barco. |
Em 1949, como consequência do seu apoio à campanha eleitoral de Norton de Matos, o
candidato da oposição à Presidência da República, Saramago é afastado da Caixa de
Abono da Indústria de Cerâmica. Mas, graças a um antigo professor da Escola Afonso
Domingues, consegue emprego na Caixa de Previdência do Pessoal da Companhia Indústrias
Metálicas Previdente, onde, até 1959, calculará subsídios e pensões.
Na manhã de 25 de Abril de 1974, a revolução encontra «um homem com meia dúzia de
livros publicados, mas que não tinham importância por aí além». É o próprio quem o
afirma, referindo-se aos títulos de poesia Os Poemas Possíveis (1966) e Provavelmente
Alegria (1970), e aos registos das suas crónicas e textos de opinião publicados na Seara
Nova, nos jornais A Capital e Jornal do Fundão (A Bagagem do Viajante, 1973)
e Diário de Lisboa (As Opiniões Que o DL Teve, 1974).
Por insistente sugestão de Isabel da Nóbrega, Saramago é então convidado para, no
Fundo de Apoio aos Organismos juvenis (FAOJ), dependente do Ministério da Educação,
coordenar uma equipa de dinamização cultural que integra a própria Isabel (
Literatura), Mário Barradas (Teatro), Rui Mário Gonçalves (Artes Plásticas), Vasco
Granja (Cinema) e José Ribeiro da Fonte (Música).
O escritor ganhava oito contos por mês, e Correia Pinto, então director-geral do
organismo, salienta que «era extremamente organizado e eficiente». Ainda em 1974,
Saramago passará a ser também assessor do Ministério da Comunicação Social.
AZINHAGA
A terra natal ficará sempre na memória do escritor. Aqui,
com os avós Josefa e Jerónimo. |
Desde 1955, o seu nome é conhecido nos meios intelectuais. Empregado na Editorial
Estúdios Cor, a convite de Nataniel Costa, durante 16 anos assume a direcção literária
desta chancela. Como agora o lembra o desenhador gráfico Luís Correia, 52 anos, filho de
um dos sócios da casa (Manuel Correia, já falecido), «Saramago ganha mal, mas faz a
revisão de todos os livros, contacta os autores, é incansável».No meio destas
andanças, é convidado para traduzir livros e escrever crónicas, «nas quais já se nota
uma mão feliz» (Baptista-Bastos), por vezes de pendor autobiográfico e, na medida do
possível, político.
Empenhado na luta contra o regime, em 1969 é convidado, pelo seu amigo Augusto Costa
Dias, director da Portugália Editora, para entrar no Partido Comunista Português. O
escritor Urbano Tavares Rodrigues, 75 anos, encontrado depois, na célula intelectual, e
descreve: «Bastante exigente e muito crítico, ele era um militante exemplar, muito
empenhado, capaz de uma entrega que ultrapassava todas as outras.»
Abandonado Pelo PCP
A PRIMEIRA SOMA
Em 1970, graças à edição de Provavelmente Alegria
na Livros Horizonte, dirigida por Rogério de Moura, Saramago recebe o seu primeiro
pagamento como autor. |
No seu percurso como comunista, sempre fiel à ideologia marxista, Saramago não
abdicará de manifestar as suas divergências. Assim, em 1988, assina o «documento da
Terceira Via», defensor de uma maior abertura interna. Algumas vezes chega a
confrontar-se com Álvaro Cunhal. Antes, na sequência do 25 de Novembro de 1975, quando
é afastado do cargo de director-adjunto do Diário de Notícias fica desempregado
e não encontra qualquer tipo de apoio por parte do PCP, que aparentemente o deixa cair
por ter sido demasiado radical ou extremista. Sofre um rude golpe.
A ele alude no quinto volume de Cadernos de Lanzarote: «O pior de tudo
(... ) foi aquele dia em que me defrontei com uma fria, gratuita e desapiedada
indiferença, vinda precisamente de quem tinha o dever absoluto de oferecer-me a mão
estendida. Sendo, porém, os casos e acasos da vida férteis em contradições, sabe-se
lá se a minha vida de escritor não terá começado justamente nessa hora?»
A CASA
Com a mãe, à porta da casa térrea onde nasceu. Pouco
depois, ela seria demolida, por causa de «uma história de partilhas e ódio fraterno» |
Na verdade, é em 1976, quando todas as portas se lhe fecham, que nasce um novo
Saramago, o escritor. Abandona todas as outras profissões, excepto a de tradutor, que
mantém, durante alguns anos, na Moraes Editores, dirigida por Nelson de Matos.
Após a publicação de mais dois livros de prosa, O Ano de 1993 (Editorial
Futura, 1975) e Objecto Quase (Moraes, 1977), e de um «ensaio de romance» (Manual
de Pintura e Caligrafia, Moraes, 1978), lança-se por fim na escrita de ficção. Levantado
do Chão (l980, Prémio Internacional Ennio Flaiano e Cidade de Lisboa) marca o
primeiro passo do que depois de se institui como «o estilo Saramago».
Em 1979, Manuel Dias Carvalho, do Círculo de Leitores, convida-o para elaborar um
roteiro de Portugal, que ele transformará no registo livre de histórias de um
viajante». O livro, Viagem a Portugal, muito bem pago pela editora, é um
êxito e permite-lhe, enfim, dedicar-se em exclusivo à escrita. A singularidade da sua
prosa marcará o resto da sua vida.
Por Fim, Feliz
O ÚLTIMO AMOR
Aos 66 anos, o escritor casa-se, numa cerimónia íntima,
realizada na sua casa de Lisboa, com a jornalista Pilar del Río, 28 anos mais nova do que
ele. |
No final do almoço, José Saramago entretém-se a colocar, com carinho, pedaços de
fruta nas bocas de Pepe, Camões e Greta, os cães da moradia a que chamou A Casa. Tem 75
anos e deixou Portugal há cinco, na sequência do veto do subsecretário de Estado da
Cultura da época à candidatura de O Evangelho Segundo Jesus Cristo ao Prémio
Literário Europeu.
A «terra sua», por via de Pilar, é agora Lanzarote, uma ilha das Canárias há
séculos povoada por berberes do Norte de África, quem sabe se por lá andou aquele
misterioso bisavô materno...Das raízes plantadas pela terra e pelas gentes da Azinhaga
na alma do escritor, subsiste tudo: tronco, ramos, folhas e frutos. No quintal, foram, em
1994, plantados dois marmeleiros com nome de gente, Victor Erice e Antonio López. Na mesa
do pequeno almoço surge muitas vezes um pão cozido em forno de lenha, suculento, barrado
com azeite e açúcar. Nas montanhas vulcânicas que cercam A Casa, desenha-se o rasto das
passadas largas do escritor, andarilho infatigável desde que se sustém nas pernas.
A FAMÍLIA
Em 1993, na varanda da casa de Lanzarote, Saramago rodeado (no
sentido dos ponteiros do relógio) por Pilar, o filho desta, Juan Jose, o cão Camões, o
neto e a neta (Tiago, 14 anos e Ana, 26, engenheira informática), o genro Danilo, e a
filha, Violante. |
Mas, agora, outra árvore nasceu na vida do escritor. Chama-se, já vimos, Pilar del
Rio, tem 48 anos, e, por ela, nos fins-de-semana de finais de 1986, Saramago percorria, de
camioneta, os sinuosos caminhos de Lisboa a Sevilha. «Se tivesse morrido aos 63 anos,
antes de a conhecer, morreria muito mais velho do que serei quando chegar a minha hora»,
escreveu.
A filha, Violante, acrescenta que Pilar o tornou «mais acessível, mais aberto, mais
capaz de derramar os sentimentos e de abandonar a sua habitual atitude de defesa».
Um mês após o anúncio da atribuição do Prémio Nobel, José Saramago comemora 76
anos de vida. Para a festa, são convocadas todas as personagens que o tornaram célebre
no globo inteiro. Blimunda, a do Memorial do Convento, que também viria a ser
título de ópera num dos mais famosos teatros líricos do mundo, vê-lhe a
alma através do corpo. E lê alto uma frase, escrita em 1966: «Que quem se cala quanto
me calei, não poderá morrer sem dizer tudo. (Poemas Possíveis)»
Quanta razão tinha a avó Josefa: mais cedo ou mais tarde, a verdade acaba sempre por
vir ao de cima.
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